4 de julho de 2008

«Manhãs lentas»

O dia amanhecera. Chuvoso por sinal, cinzentão, pelo que Manelinha decidira deixar-se na cama mais tempo do que era costume. Ouvia lá dentro o barulho de cadeiras a arrastar no chão, tendo a sensação de que António se estava constantemente a sentar e a levantar da cadeira posta à mesa do seu quarto.
Sempre gostou de imaginar o que as pessoas estariam a fazer de acordo com o que ouvia e percepcionava à distância. Era quase como se espiasse as pessoas pelo pensamento, colocando-as a fazer as mais variadas e surreais coisas. Talvez esta necessidade de ver os outros na sua imaginação tivesse origem no facto de não saber lidar com elas e com as suas acções na vida real, e ainda mais pelo facto de saber e sentir (o que não é de todo a mesma coisa) que nenhum outro se dava ao trabalho de imaginar o que fazia Manelinha dentro de paredes fechadas. Por vezes chegou mesmo a pensar, em alturas em que Isabelinha estava na sala ou na cozinha e ela no seu quarto, que mesmo que fizesse os barulhos mais estranhos ou se matasse, nunca ninguém se iria lembrar que ela estava no quarto há horas. A sua ausência era de facto uma ausência, não estimulando nos outros a velha pergunta "o que é que andará a fazer?".
Levantou-se da cama e, espreitando para a rua através da sua janelinha pensou que era um bom dia para ficar em casa, tendo logo a sensação de que aquele seria um dia comprido.
Não estava preocupada com o almoço porque de véspera Isabelinha avisara que iria almoçar com as colegas num novo snack-bar com uns "menus do dia muito em conta", que abrira a poucos metros do hospital. Manelinha, crítica e irónica, imaginava já o snack-bar inundado de batas brancas e de moças com o cabelo apanhado e com umas crocks calçadas ou uma imitação das crocks, que como dizia Isabelinha era do mais confortável que existia. Quando dava por si a pensar na filha, na sua rotina, sentia uma ponta de amargura por nunca ter estudado para além do sétimo ano e sentia uma ponta de inveja da aparente realização da filha, que, apesar da sua profissão e de ser bem sucedida, decidira não abandonar a mãe. Manelinha irritava-se quando se apercebia disto: ela não teria sido capaz de se deixar ficar para trás para ficar do lado de alguém importante, e não concebia a ideia de que fizessem isso por ela.
Era amarga. Amarga como os dias cinzentos numa pequena cidade onde nada mais há para descobrir. A única altura em que esta amargura se dissipava momentaneamente era nas suas idas ao talho do Senhor Moisés. E ao lembrar-se deste facto decidiu que precisava de umas entremeadazinhas para o jantar.

8 comentários:

T. disse...

Claro que me lembro de ti rapariga, então não? E aquelas longas conversas nas aulas! =)

Belas semanas que passei em CPRI!

Li na diagonal, mas quando tiver tempo volto para te seguir melhor.

btw vou linkar-te também!**

rogério disse...

:)

CLAP!CLAP!CLAP! disse...

we try harder...

KEEP IT GOLDEN disse...

como é que eu ainda não tinha reparado nisto?!

gosto de ler estas histórias duas ou mais vezes de seguida...

Rui Carvalheira disse...

"Manelinha, mais que temer estar só, queria ser desejada.
E essa necessidade era mais forte que a gratidão que devia à filha que com ela decidira ficar.
A ideia de alguém ter ficado com ela por misericórdia, era mais prova do seu fracasso, que motivo de satisfação.
Era por isso que era tão amarga. Aquele acto de amor da filha, era uma lembrança diária daquilo que não consegui deixar de querer".

Luis Ferreira disse...

Parabens pelo blog... gostei de ler os textos e a forma como os mesmos são escritos (qualidade)

Luis

Anónimo disse...

os dias cinzentos são sempre o primeiro passo para um resto de dia sombrio.

Herético disse...

gosto de manhãs onde o amarelo se mistura com o azul logo pelas 7 da manhã e rompe-nos os olhos quando estamos na cama.