13 de maio de 2008

«Isabel de Isabelinha»

Isabel, como gostava que a tratassem, era de uma beleza singular. Era daquelas pessoas que de tão belas passava despercebida. Talvez por ser uma mulher simples, e para além de simples, era de facto descomplicada.
Tímida, mas sem ser sonsa, delicada e generosa. Das suas amizades, preservou duas amigas do liceu e um grande amigo de infância, vizinho desde sempre. O resto eram pessoas de passagem. Não era por isso uma pessoa solitária, mas não era muito dada a fazer amizades, gostando contudo de se ligar às pessoas, de construir pelo menos as bases para que exista qualquer coisa. Talvez isso acontecesse por acidente. Todos lhe pareciam demasiado efusivos, superficiais e, por isso mesmo, deixava a sua intimidade a poucos, aos que lhe pareciam ser minimamente infelizes, talvez. A felicidade fácil e demasiado colorida, que todos aparentavam, causava-lhe alguma impressão. (Defesa, falta de esperança, frustração?) Soava-lhe a falso, assemelhava-se à mentira. E Isabel não suportava a mentira. A maioria das pessoas (de passagem, sempre a passar) considerava a felicidade e alegria atraentes e, de facto, quem não gosta de estar rodeado de pessoas de bem com a vida? Mas Isabel tinha um conceito de felicidade cinzento. Cinzenta.
Felicidade melancólica, coberta de sombra. Ninguém sequer imaginava. Isabel era aquela que todos identificavam com a personagem das histórias de encantar, aquela que sonhava, acreditava e vivia num mundo cor-de-rosa perfeito independentemente de todas as dificuldades ou sofrimento.
Nunca foi dada a festas, exageros ou comemorações. Recatava-se ao seu interior, à sua simplicidade, à sua vida quase simplória, às suas dúvidas e sonhos, aos seus medos, medinhos, coisas raramente partilhadas, e considerava-se feliz.
Quase o oposto da sua mãe, sempre queixosa, entregue realmente a uma simplicidade desgastante e desinteressante.
Isabelinha tinha cabelos negros, lisos, que lhe passavam dos ombros. Uns grandes olhos castanhos, nariz redondo e boca pequena. Dizia-se ser parecida com o pai, que as tinha deixado há mais de doze anos. Não se sabe porquê nem para onde tinha ido.
Isabel não pensava muito nele, nem se interessava, nem se arrependia, nem sentia raiva. Deixara-se embrulhar por um certo estado de apatia em relação a ele. Algo que irritava bastante Manelinha, que queria ver reflectidos na filha o seu grande ódio, rancor... amor, em relação àquele homem que a abandonou.
Isabel não podia deixar-se consumir nesse dilema. Afinal ela era simples e todas essas questões relacionadas com ele traziam-lhe somente alvoroço para dentro de si mesma. A última vez que se referiu ao pai foi quando em limpezas e arrumações, para prepararem o quarto azul, se deparou com um maço de cartas dirigidas à mãe, no fundo falso da última gaveta da cómoda. Cartas que a mãe nunca abrira e que Isabel percebeu serem dele pela caligrafia desajeitada, quase infantil. Manelinha entrou de repente no quarto e só viu Isabelinha com as cartas na mão:
- Deixa-te de coisas....! - disse, sem saber sequer o que dizer perante a descoberta da filha.
E Isabel, calmamente entregando as cartas à mãe, apenas murmurou:
- São todas para ti. Ele gostava de ti.

9 de maio de 2008

«Olhar para letras não significa lê-las»

António não compreendia os dias. Como pedir a um homem abandonado à sua solitude que compreenda os dias? Para ele os dias eram isso mesmo, manhã, tarde e noite, um acumular de horas em relógios espalhados por todo o mundo.
Com duas semanas de férias, António dava ainda menos importância aos dias. Veio à cidade tratar de papelada por causa da morte do seu parente mais próximo, o tio Augusto, que morrera agarrado à cama, depois de semanas e semanas ao abandono. Não fosse a senhora responsável pelo prédio e o tio de António permaneceria naquela triste condição, já depois de morto, o que a tornaria ainda mais triste, por tempo indefinido.
Depois de tratar de tudo, António não tinha coragem suficiente para regressar à sua vida habitual. Duas semanas pareciam-lhe, aliás, muito pouco para se habituar à ideia de que estava definitivamente sozinho no mundo. Não quer dizer que antes não estivesse, mas a morte tem sempre esta capacidade feroz de nos lembrar de que estamos vivos. E não se pode estar só estando morto.
Meio perdido, deixava-se ficar na casa da Sra. Dona Manuela, arrastando-se inutilmente pelas paredes do quarto azul e pelas páginas dos livros que trouxera de casa do tio Augusto. Tentava assim, descolar-se da sua morte, mas descolava-se também da sua vida. Não era um homem de se fazer muitas perguntas, saber as respostas causava-lhe já dano suficiente, quanto mais verbalizá-las para si mesmo. Para quê? De que serve sabermos exactamente onde estão as nossas falhas, fraquezas e necessidades, se não está ao nosso alcance alterar as coisas? Assim pensava. E quando folheava os livros de páginas amareladas, que não lhe diziam nada, do seu tio, sentia que deixava o tempo fugir-lhe em cada linha que lia com os olhos e não com a cabeça. Olhar para letras não significa lê-las. Assim como estar vivo não significa viver.
Alheado da sua vida e da vida dos outros, passatempo que não lhe agradava, ficava miseravelmente sentado entre o banco da cozinha e a cadeira do quarto, fingindo esperar que o tempo trouxesse com ele outro tempo para ele. Percorridas horas, comia qualquer coisa e deixava-se fechar no quarto, tombado na cama à espera de dormir. A maioria das vezes nem saía para jantar. Lá dentro ouvia tachos e o som do óleo a ferver, o microondas a apitar e, caído ao lado do seu corpo, tentava dormir.
Adormecia cedo, antes das nove da noite, mas, a meio da noite acordava, quase pronto para realmente acordar, e nesse estado híbrido de existência punha-se a chorar...

7 de maio de 2008

«Os laços de Manelinha»

Manelinha levantou-se já perto das dez da manhã, rabugenta consigo mesma, quase zangada com mais um dia; sai da cama e lembra-se que tem "visitas" em casa.
António, o "santinho", era daqueles que ficava alojado na cidade só porque sim, não tinha compromissos, aparentemente não vinha em trabalho, vinha mudar de ares, e à Manelinha, depois de três dias de convivência mínima, António parecia-lhe um "santinho". Chegava a irritá-la, o "santinho", e ter de levar com ele, que ficava entre a cozinha e o quarto a passear-se todo bem vestido, além de a incomodar, irritava-a mesmo.
Ele tentava fazer conversa, educadamente, mas Manelinha, como sempre, arrepiava-se só de pensar que algum dia, alguma alma daquelas a quem aluga o quarto, se lembrasse de querer ficar ali indefinidamente.
Criar laços não era com ela. Já Isabelinha, parvinha, preferia quando alguém chegava a casa dela para ficar, um ficar que significava cinco dias no máximo normalmente. Gostava de pensar, fingir, que existia alguém naquela casa, a sério, para além das duas. Gostava porque ao fim de quatro dias as pessoas começam a falar mais abertamente, a dar-se um pouco, mas depois... Depois é hora de ir embora.
Quando Manelinha sai da casa de banho, já arranjada para sair directamente para o café do Tinoco, beber o seu carioca e comer o seu bolo de arroz, dá de caras com o António sentado à mesa da cozinha, de mãos a segurar a testa.
- Bom dia António.
- Bom dia Sra. Dona Manuela, passou bem? - responde António levantando-se para cumprimentar de longe a dona da casa.
- Passei bem sim senhor, vou lá abaixo "à do Tinoco", fica em casa, é?
- Fico sim, se não se importar, vou ler umas coisas...
- Leia, leia, mas veja lá se apanha ar.
E saiu de casa a pensar que podia ter dado uma resposta melhor. Incomodava-a ter estranhos a ler ou a fazer o que quer que fosse , o dia todo fechados na sua casa. E esqueceu-se de trancar a porta do seu quarto.