9 de maio de 2008

«Olhar para letras não significa lê-las»

António não compreendia os dias. Como pedir a um homem abandonado à sua solitude que compreenda os dias? Para ele os dias eram isso mesmo, manhã, tarde e noite, um acumular de horas em relógios espalhados por todo o mundo.
Com duas semanas de férias, António dava ainda menos importância aos dias. Veio à cidade tratar de papelada por causa da morte do seu parente mais próximo, o tio Augusto, que morrera agarrado à cama, depois de semanas e semanas ao abandono. Não fosse a senhora responsável pelo prédio e o tio de António permaneceria naquela triste condição, já depois de morto, o que a tornaria ainda mais triste, por tempo indefinido.
Depois de tratar de tudo, António não tinha coragem suficiente para regressar à sua vida habitual. Duas semanas pareciam-lhe, aliás, muito pouco para se habituar à ideia de que estava definitivamente sozinho no mundo. Não quer dizer que antes não estivesse, mas a morte tem sempre esta capacidade feroz de nos lembrar de que estamos vivos. E não se pode estar só estando morto.
Meio perdido, deixava-se ficar na casa da Sra. Dona Manuela, arrastando-se inutilmente pelas paredes do quarto azul e pelas páginas dos livros que trouxera de casa do tio Augusto. Tentava assim, descolar-se da sua morte, mas descolava-se também da sua vida. Não era um homem de se fazer muitas perguntas, saber as respostas causava-lhe já dano suficiente, quanto mais verbalizá-las para si mesmo. Para quê? De que serve sabermos exactamente onde estão as nossas falhas, fraquezas e necessidades, se não está ao nosso alcance alterar as coisas? Assim pensava. E quando folheava os livros de páginas amareladas, que não lhe diziam nada, do seu tio, sentia que deixava o tempo fugir-lhe em cada linha que lia com os olhos e não com a cabeça. Olhar para letras não significa lê-las. Assim como estar vivo não significa viver.
Alheado da sua vida e da vida dos outros, passatempo que não lhe agradava, ficava miseravelmente sentado entre o banco da cozinha e a cadeira do quarto, fingindo esperar que o tempo trouxesse com ele outro tempo para ele. Percorridas horas, comia qualquer coisa e deixava-se fechar no quarto, tombado na cama à espera de dormir. A maioria das vezes nem saía para jantar. Lá dentro ouvia tachos e o som do óleo a ferver, o microondas a apitar e, caído ao lado do seu corpo, tentava dormir.
Adormecia cedo, antes das nove da noite, mas, a meio da noite acordava, quase pronto para realmente acordar, e nesse estado híbrido de existência punha-se a chorar...

2 comentários:

T. disse...

"Olhar para letras não significa lê-las."


tão verdade!

Traianus Hadrianus disse...

A indissociável beleza das tuas palavras...